Quando os filhos se tornam espelhos: uma reflexão psicanalítica sobre o narcisismo materno. "Algumas mães não criam filhos, cultivam espelhos."— @visaopsicanalitica
A imagem que acompanha esta postagem é potente. Uma mãe altiva, rodeada por três filhos sem rosto. Em lugar de suas feições, espelhos. A frase que a acompanha é igualmente provocadora: “Algumas mães não criam filhos, cultivam espelhos.”
Essa cena simbólica nos convida a pensar sobre o narcisismo materno, tema frequentemente abordado na clínica psicanalítica. Quando uma mãe se relaciona com seu filho não como um sujeito em formação, mas como um reflexo de si mesma, de seus desejos, frustrações ou ideais, ela não permite que esse filho se constitua como um ser autônomo. Ao invés de criar um sujeito, ela molda um espelho, um outro que existe apenas para confirmar sua imagem.
Essa relação, muitas vezes, está atravessada por uma dinâmica simbiótica, em que mãe e filho permanecem emocionalmente fundidos. A simbiose, tal como abordada na psicanálise, especialmente em autores como Ferenczi e Green, é uma forma precoce de vínculo onde os limites entre self e outro ainda não foram diferenciados. No início da vida, essa fusão é necessária e até vital, pois o bebê depende da responsividade materna para sobreviver e formar seu aparato psíquico. No entanto, quando essa fase se prolonga indefinidamente, ou quando a mãe não tolera a separação, ocorre uma fixação simbiótica. O filho não é autorizado a se separar, a desejar por si, a se diferenciar.
Ferenczi, ao refletir sobre o trauma e a influência do ambiente, mostrou como relações marcadas por invasão emocional e desconsideração da alteridade da criança deixam marcas profundas. Já André Green nos ajuda a pensar em como, em contextos simbióticos, a ausência de um terceiro simbólico, um limite, uma lei, uma função que interrompa a fusão, impede a constituição do sujeito. O filho é capturado pelo desejo materno e reduzido à função de objeto narcísico. Não há espaço psíquico para ele existir como alguém separado, com desejos próprios.
Como descreveu Winnicott, o cuidado materno suficientemente bom inclui a capacidade de “falhar de maneira adequada”, ou seja, permitir que o bebê experimente frustrações toleráveis e, assim, possa se desenvolver como sujeito. Na simbiose patológica, essa possibilidade é negada. A mãe busca manter o controle absoluto do vínculo, muitas vezes de forma inconsciente, e o filho é mantido em um lugar de completude ilusória, lugar que o impede de crescer emocionalmente.
Na prática clínica, não é raro encontrarmos adultos que, em algum momento do processo analítico, se deparam com a dolorosa constatação de que foram educados para serem extensão de seus pais. Essa descoberta costuma vir acompanhada de angústia, culpa e, muitas vezes, um sentimento de vazio identitário: “Se eu não sou aquilo que minha mãe esperava, quem sou eu, então?”
Essa reflexão não tem como objetivo julgar as mães, mas abrir espaço para pensarmos sobre as heranças psíquicas que atravessam gerações. Em tempos de redes sociais, onde a performance da maternidade ideal é constantemente exaltada, é ainda mais urgente recuperar o valor da escuta, do vínculo real e da singularidade de cada filho.
A imagem publicada por @visaopsicanalitica toca, com sensibilidade e contundência, nesse ponto cego que tantas vezes passa despercebido: o desejo inconsciente de moldar o outro à imagem e semelhança de si. E, com isso, ela nos convida a um movimento oposto, o de abrir espaço para que o outro possa ser o que é, e não o que esperamos que seja.
Autoria: Renata Dose
Psicanalista | Atendimento presencial e online
Rua Gonçalo de Carvalho, 209/404 — Porto Alegre/RS

Comentários
Postar um comentário