Inveja não é sobre o outro: a dor psíquica em Invejosa (Netflix)

A série Invejosa, da Netflix, abre uma janela sensível, e muitas vezes desconfortável, para um afeto humano universal: a inveja. Longe de tratá-la como uma simples rivalidade, a narrativa nos permite observar suas raízes psíquicas, suas defesas e suas dores. A protagonista, ao se comparar com amigas e com a irmã que se casam e têm filhos, ao longo das temporadas, se vê confrontada com a própria sensação de falha, especialmente após terminar um relacionamento de longa data com um homem que não quis casar com ela.

Inveja como ferida narcísica

Na psicanálise, a inveja tem uma função muito específica: ela surge quando o outro parece possuir algo que expõe uma falta insuportável em nós. Não se trata apenas de desejar o que o outro tem, mas de sentir dor diante da comparação. Para Melanie Klein, a inveja é um afeto primitivo que tenta atacar aquilo que simboliza abundância e completude.

Na série, cada amiga que casa e a irmã tendo uma filha e morando no condomínio que ela queria morar, funciona como um espelho incômodo. A protagonista não inveja só o casamento, ela inveja a ideia de estabilidade, de ter feito tudo “certo”, como manda o roteiro social.

O fim do relacionamento como colapso do ideal

Quando o ex-namorado diz que não quer casar, ela não perde apenas um parceiro: perde um ideal de si mesma. Freud descreve que o narcisismo se apoia nesses ideais, aquilo que acreditamos que seremos, faremos ou conquistaremos. Quando isso cai, surgem sentimentos de inadequação, vergonha e angústia.

A dor dela não é apenas amorosa. É uma ferida narcísica:
“Por que com as outras acontece, e comigo não?”

Irmã e a rivalidade silenciosa

A relação com a irmã expõe uma rivalidade fraterna profunda. Pela via psicanalítica, irmãos representam espelhos internos, comparações que remontam à infância. A irmã aparece como a figura que “conseguiu tudo primeiro”: casamento, filho, estabilidade emocional e social.

É como se a protagonista revivesse a experiência infantil de ficar “sem o brinquedo”, mas agora em uma versão adulta e muito mais dolorida.

A relação com a analista: ambivalência, ataque e dependência

Um dos pontos mais interessantes da série é o vínculo com sua analista. As sessões revelam uma transferência intensa: ela procura ajuda, mas também ataca; busca acolhimento, mas critica; quer compreensão, mas teme ser vista de verdade.

Winnicott descreve esse movimento como uma defesa do falso self, que tenta controlar o ambiente para evitar sentir-se vulnerável. A protagonista quer a analista, mas a inveja do “saber” da analista também a atravessa. A relação é ambivalente, viva, provocadora:  e fiel ao que ocorre no consultório.

A inveja como ponto de partida (não como falha moral)

Invejosa nos lembra que a inveja não é um defeito de caráter, mas um sinal de que algo em nós deseja, e sofre. É a expressão de um ideal quebrado, de uma comparação que nos machuca, de um desejo que ainda não sabemos nomear.

A série nos convida a perguntas importantes:

● O que realmente quero?

● O que invejo porque é desejo meu, e o que invejo porque me disseram que eu deveria querer?

● Qual é o meu caminho, e não o das outras pessoas?

No fim, a inveja não destrói a protagonista, ela a leva a se olhar.
E nesse olhar, começa a transformação.

O processo analítico como espelho desconfortável

Ao longo da série, a análise funciona como um espaço onde a protagonista é obrigada a encarar justamente aquilo que tenta evitar no cotidiano: sua sensação de fracasso, sua rivalidade com a irmã, seu desamparo afetivo e sua dificuldade de elaborar perdas.

A cada sessão, é possível perceber que ela chega com discursos prontos: queixas repetidas, justificativas, ironias. É como se tentasse apresentar uma versão controlada de si mesma, evitando se aproximar do que realmente dói. Esse movimento revela um falso self defensivo, no sentido winnicottiano: uma camada que protege o ego de experiências emocionais profundas demais.

Mas a analista insiste em não entrar nesse jogo. Ela não julga, não se apressa em interpretar, e mantém uma posição estável, permitindo que o conteúdo psíquico da protagonista circule. Isso, paradoxalmente, a irrita e a atrai ao mesmo tempo.

A transferência: buscar ajuda e atacar ao mesmo tempo

A relação transferencial na série é extremamente rica. A protagonista oscila entre:

● Admiração (ela busca a analista como porto seguro),

● Competição (quer mostrar que sabe mais),

● Hostilidade (ironiza, desqualifica),

● Dependência disfarçada (precisa da sessão, mas teme precisar demais).

Esse movimento é típico de pacientes que vivem a dependência como ameaça. A analista torna-se uma figura que detém algo que ela sente não ter: estabilidade, clareza, capacidade reflexiva. E justamente por isso, a paciente pode experimentar inveja do próprio processo de pensar da analista.

A série mostra algo essencial do trabalho clínico:
o paciente pode desejar destruir o objeto que o ajuda, porque esse objeto revela sua falta, sua dependência e sua vulnerabilidade.

Essa ambivalência: amar e atacar,  é o motor da análise.

Ruptura e reparação: o lugar da analista

Há momentos em que a protagonista parece testar os limites da analista, quase como se buscasse provocá-la até que ela fraquejasse. Mas a analista sustenta o enquadre, mantém o lugar simbólico de quem suporta, sem retaliar, sem colapsar, sem preencher o vazio de forma ansiosa.

Essa capacidade de “sobreviver” aos ataques, no sentido que Winnicott descreve, permite que a paciente experimente, talvez pela primeira vez, um vínculo que não desaba diante de sua agressividade.
E é aí que algo novo pode surgir.

Como diz André Green, o analista precisa oferecer um espaço onde a vida psíquica possa se mover,  mesmo quando essa vida se apresenta de forma caótica, hostil ou confusa.

Na série, esse é exatamente o ponto: a analista funciona como o espaço vivo onde a protagonista pode, aos poucos, começar a se ver com menos dureza.

A análise como lugar onde a inveja pode ser dita

É apenas no espaço analítico que a protagonista começa a nomear a inveja não como falha moral, mas como expressão de dor. A análise lhe permite reconhecer que inveja é, antes de tudo, um testemunho da própria falta, e que olhar para isso exige coragem.

A transferência se torna o laboratório onde ela ensaia novas formas de se relacionar:
menos defensivas, menos competitivas, menos destrutivas.
É ali que algo começa a mudar.










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