O fascínio pelo mal: o que a série Tremembé revela sobre o inconsciente humano

Entre o medo e o desejo

Por que tantas pessoas se interessam por histórias de crimes reais?
Por que true crimes, como a série Tremembé, que retrata presos famosos, despertam tanta curiosidade, medo e até prazer em assistir?

A psicanálise oferece uma lente potente para compreender esse fenômeno. Assistir a um true crime é muito mais do que buscar entretenimento: é um encontro com o lado sombrio da condição humana, aquele que todos carregamos, ainda que inconscientemente.

Freud, em seu texto “O estranho ” (Das Unheimliche, 1919), descreve o desconforto que sentimos diante do familiar que se torna estranho, ou do estranho que revela algo familiar. O true crime encarna exatamente esse paradoxo: o mal que julgamos “distante” revela, em algum nível, algo nosso. Há um espelho que nos devolve imagens perturbadoras daquilo que gostaríamos de negar.

O espetáculo do superego

Nas narrativas criminais, julgamos os assassinos, os motivos, as falhas morais. Mas, como aponta Freud em “O mal-estar na civilização” (1930), o ser humano vive em conflito entre seus impulsos e as exigências morais impostas pelo superego.
O true crime ativa essa instância moral: ao assistir, pensamos: “Eu não faria isso”, e sentimos um alívio temporário. Projetamos o mal no outro e, assim, reafirmamos nossa própria integridade.

Essa dinâmica é uma forma de defesa psíquica: o espectador reprime o que há de destrutivo em si e o desloca para o criminoso, mantendo a ilusão de pureza. Como diria Lacan, “o mal é sempre o desejo do outro”, nunca o nosso.

O prazer de olhar

Há, também, um aspecto pulsional nesse fascínio. O olhar ocupa um lugar central na experiência do true crime. Assistimos às cenas, aos depoimentos, às reconstruções, e algo em nós quer ver, mesmo que doa.

Freud, em seus estudos sobre a pulsão escópica, e posteriormente Lacan com o conceito do “olhar do Outro”, mostram que o desejo está profundamente ligado ao que se vê e ao que se é visto.
No true crime, o espectador é convidado a olhar o interdito: o crime, o horror, a transgressão, de um lugar seguro. É um modo de experimentar o limite sem atravessá-lo.

Essa posição, porém, é ambígua: quanto mais olhamos, mais o olhar nos captura.
O que nos atrai não é o sangue, mas o mistério daquilo que está além da lei, o que Freud chamaria de pulsão de morte, ou Thanatos: a tendência inconsciente à repetição e à destruição.

Tremembé: o real encenado

A série Tremembé acrescenta uma camada simbólica singular: ela mistura crimes reais com reconstituições e atores famosos.
Essa combinação entre o real e o ficcional cria uma experiência psíquica intensa, quase hipnótica. O espectador oscila entre o saber e o não querer saber, entre a repulsa e a atração.

Como observa André Green, a cultura contemporânea tende a espetacularizar o negativo, transformando o trauma em narrativa. O que era impensável vira conteúdo; o horror é traduzido em imagem. O risco é a dessensibilização, quando o mal deixa de causar espanto e passa a ser apenas mais uma história.

O espelho do inconsciente


No fim, Tremembé, assim como todo true crime, não fala apenas de assassinos.
Fala de nós.
Dos limites da nossa humanidade.
Do que fazemos com o mal que habita em cada um.

A psicanálise nos convida a olhar para esse espelho com responsabilidade, reconhecendo que o mal não está “lá fora”, mas faz parte da condição humana.
Ver não é suficiente: é preciso simbolizar.
Só quando o olhar se transforma em pensamento é que o espectador deixa de ser voyeur e se torna sujeito da própria experiência.

Conclusão

O sucesso de Tremembé revela o quanto nossa sociedade busca compreender, e domesticar, o mal.
O true crime é, em última instância, uma narrativa sobre o inconsciente: sobre a luta entre pulsão e moral, desejo e interdição, vida e morte.
Talvez o que mais nos atraia não seja o crime em si, mas a possibilidade de reconhecer o humano onde acreditávamos haver apenas monstros.

Referências psicanalíticas

FREUD, S. O estranho (1919).

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930).

LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).

GREEN, A. O trabalho do negativo (1993).

WINNICOTT, D. W. Natureza humana (1988).

Assistir a um true crime é, muitas vezes, olhar para o mal “de fora”, mas a angústia que ele desperta fala do que está “dentro”.

A psicanálise oferece um espaço para pensar o que essas imagens tocam em cada um de nós.

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