Frankenstein pela Psicanálise: o desejo de vencer a morte, o drama edípico e as sombras do narcisismo
O mito de Frankenstein, seja na obra de Mary Shelley ou nas adaptações cinematográficas, revela muito mais do que horror. Ele expõe, em profundidade, conflitos edípicos, fantasias de onipotência e a tentativa desesperada de negar a morte. Sob o olhar psicanalítico, a narrativa ganha densidade: fala da recusa da castração, da rivalidade fraterna, da culpa e da impossibilidade de integrar a perda.
O luto pela mãe e o impulso de vencer a morte
O ponto de partida do drama de Victor Frankenstein é a ferida narcísica deixada pela morte da mãe. Em vez de luto, emerge um movimento que Freud chama de desmentido: negação ativa da realidade traumática. Victor busca, então, não criar vida, mas acabar com a morte.
O Complexo de Édipo: desafiar o pai e resgatar a mãe
No Édipo, o sujeito deseja o objeto materno e enfrenta a interdição paterna. Ao tentar dominar a vida e a morte, Victor ocupa uma posição impossível: a de fundador da vida, alguém que supera pai e mãe. Para Lacan, essa recusa da ordem simbólica evidencia a fragilidade do Nome-do-Pai enquanto função estruturante.
Criar um ser vivo a partir da morte é, simbolicamente:
● Desafiar o pai,
● Resgatar a mãe ideal,
● Recusar o lugar de filho.
A fantasia de vencer a morte é a fantasia de vencer a castração.
Rivalidade fraterna em Ferenczi: amor, identificação e culpa
Com Ferenczi, a rivalidade fraterna não é explicada pela inveja primária (como em Klein), mas pela mistura delicada entre amor, identificação e ambivalência. Para ele:
● O irmão é simultaneamente amado e rivalizado,
● A proximidade afetiva desperta tensões,
● A agressividade reprimida convive com o desejo de proteger,
● E os conflitos infantis não simbolizados retornam como sintomas ou culpa.
Victor Frankenstein vive exatamente essa complexidade.
William, o irmão mais novo, aparece como:
● O “querido da família”,
● O depositário das expectativas e afetos parentais,
● O representante de um ideal inocente.
A morte de William pelas mãos da Criatura desperta em Victor não apenas dor, mas uma culpa ferencziana: culpa pela agressividade que ele nunca reconheceu ter, culpa pela confusão interna de amor e hostilidade que Ferenczi descreve tão bem.
A Criatura atua o ódio recalcado que Victor não suporta reconhecer.
Ela faz o que o inconsciente fraterno jamais pôde simbolizar.
Ferenczi mostra que, quando a criança não encontra espaço para expressar sua agressividade e seus conflitos, ela aprende a “adaptar-se” de forma exagerada, e essa adaptação traumática retorna depois como acting out, culpa, autossacrifício ou identificação com o agressor.
Victor é esse sujeito hiperadaptado, obediente ao ideal paterno, incapaz de reconhecer seus impulsos destrutivos, que acabam retornando através de sua criação.
A noiva do irmão: triangulação e repetição edípica
A relação de Victor com a noiva do irmão acrescenta mais uma camada.
Triangulações amorosas entre irmãos reativam intensamente a constelação edípica.
Ferenczi via nesses rearranjos afetivos um terreno fértil para:
● Repetições inconscientes,
● Ambivalências não resolvidas,
● Deslocamentos de desejos proibidos.
Desejar a noiva do irmão é reencenar o drama infantil:
● Disputar o amor,
● Querer ser o único,
● Vencer o rival,
● Reapropriar-se do objeto.
É uma repetição do triângulo original, agora com novos personagens.
E mais uma vez a Criatura atua o indizível: ao destruir aqueles que Victor ama, ela devolve ao criador a verdade psíquica que ele recalcou, o conflito entre amor e ódio, desejo e culpa.
A Criatura como filho abandonado: trauma e confusão de línguas
Ferenczi descreve, em “Confusão de Línguas”, os efeitos devastadores quando o adulto impõe ao infantil uma linguagem que ele não pode compreender ou integrar. No caso de Frankenstein, a relação pai–filho é atravessada por uma confusão ainda mais primitiva: a linguagem emocional ausente.
A Criatura nasce sem:
● Acolhimento,
● Nome,
● Função materna,
● Reconhecimento,
● Narrativa que o situe no mundo.
Ele é lançado a uma existência sem tradução simbólica.
Para Ferenczi, isso é traumático, e o trauma, quando não pode ser simbolizado, se transforma em atuação, violência, ruptura.
A Criatura não é um monstro.
É um filho traumatizado que responde na língua do desamparo.
Pulsão de vida e pulsão de morte
Toda a narrativa se organiza em torno da tensão freudiana entre:
● Eros: amor, criação, ligação.
● Thanatos: destruição, repetição, negação.
Victor tenta, ao mesmo tempo, criar e negar a morte.
A Criatura encarna essa fusão pulsional: vida surgida pela morte, amor que vira ódio, desejo que produz destruição.
Quando a castração é recusada, a pulsão de morte domina.
O que Frankenstein revela sobre nós
A história não fala de monstros.
Fala de humanos.
Sobre:
● A dificuldade de aceitar limites,
● O luto impossível,
● O conflito entre irmãos,
● O amor que se mistura com culpa,
● A ambivalência que Ferenczi descreveu tão bem,
● E o retorno do recalcado quando a psique não consegue simbolizar.
Frankenstein é, no fundo, a história de um homem que tentou dominar a morte e acabou destruído pela recusa de aceitar sua própria condição humana.
Conclusão
No fundo, a história de Victor Frankenstein revela um sujeito tentando negar seus próprios limites psíquicos. Ao buscar criar vida sem a mãe e vencer a morte, ele encena uma fantasia de onipotência descrita por Ferenczi, a tentativa infantil de recuperar um narcisismo primário em que tudo é possível.
A criatura que produz torna-se o retorno daquilo que Victor tenta expulsar de si: sua culpa, sua fragilidade, sua parte não simbolizada. As relações com o irmão e com a noiva reforçam esse enredamento infantil, onde rivalidade, desejo e reparação nunca se integram plenamente.
Frankenstein, assim, não é apenas um romance sobre ciência, mas sobre os riscos psíquicos de negar a castração, rejeitar a dependência e insistir na ilusão de controle absoluto. O monstro surge justamente quando tentamos ser mais do que humanos.
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