Por que, do ponto de vista psicanalítico, o bebê não “precisa” da creche para se desenvolver: o papel do vínculo adulto-criança
A pergunta sobre colocar ou não um bebê na creche toca em dimensões práticas, sociais e emocionais. Do ponto de vista psicanalítico clássico: com base em Freud, Ferenczi, Melanie Klein e Winnicott, o desenvolvimento psíquico inicial funda-se sobretudo na qualidade do vínculo com cuidadores primários. A socialização com outras crianças é relevante em etapas posteriores, mas não substitui, nos primeiros anos, a função estruturante do olhar, da presença e da regulação oferecidos por um adulto que possa proporcionar continuidade afetiva.
Freud: primeiros laços e a constituição do aparelho psíquico
Para Freud, a infância é o período em que se estabelecem os laços afetivos primários, fundamentais para a constituição do ego. A presença constante do cuidador primário permite que o bebê internalize sentimentos de segurança e proteção, essenciais para a formação de uma base psíquica sólida. Quando a criança é separada precocemente, ela enfrenta angústia de separação antes de desenvolver recursos internos adequados, o que pode gerar modos defensivos e padrões de ansiedade que se enraízam no aparelho psíquico.
Ferenczi: sensibilidade relacional, “confusão de línguas” e por que o cuidado individualizado é fundamental
Sándor Ferenczi deslocou o foco da explicação do sofrimento infantil do evento isolado para a qualidade relacional em que o acontecimento se insere. Para ele, o que marca profundamente a vida psíquica da criança não é apenas um episódio aversivo em si, mas sobretudo a incapacidade do ambiente de tornar esse sofrimento simbolizável, isto é, de nomeá-lo, acolhê-lo e integrá-lo em narrativas que a criança possa assimilar. Essa ênfase relacional tem implicações diretas na avaliação sobre creches nos primeiros anos.
A teoria ferencziana oferece ao menos quatro argumentos explicativos relevantes:
Confusão de línguas: Ferenczi descreve como os adultos frequentemente tratam a experiência infantil com a linguagem e as intenções próprias do adulto: impondo expectativas, urgências ou paradoxos emocionais que a criança não está equipada para decifrar. Em ambientes com múltiplos cuidadores, a criança recebe mensagens heterogêneas: ritmos diferentes, respostas emocionais distintas e interpretações diversas de comportamentos idênticos. Para Ferenczi, essa multiplicidade aumenta a probabilidade de confusão de línguas, dificultando que a criança construa uma representação coerente do cuidador e de si mesma.
Trauma relacional e impossibilidade de simbolizar: Ferenczi insistia que o trauma muitas vezes resulta não só de violência explícita, mas da fragmentação do campo relacional, quando as necessidades emocionais da criança não encontram um sujeito adulto capaz de sustentá-las. Experiências de atenção intermitente e padronizada, sem devolução empática contínua, deixam angústias sem forma narrativa; essas angústias tendem a transformar-se em sintomas corporificados ou em padrões defensivos que persistem.
Risco de identificação com atitudes não-nutritivas do adulto: Ferenczi analisou como a criança, diante de respostas inadequadas ou agressivas, tende a internalizar aspectos do adulto, seja por identificação com o agressor, seja por adaptação precoce. Em creches onde o vínculo de referência é fluido, o bebê pode ser pressionado a adaptar-se a respostas pouco sensíveis, incorporando um modo de funcionamento marcado por hipervigilância afetiva, supressão de demandas e dificuldades na expressão autêntica das necessidades.
A necessidade de reparação relacional e a função do adulto que "retorna" o sofrimento: Ferenczi também enfatizou a possibilidade de reparação: o sofrimento infantil pode ser transformado quando um adulto acolhedor reconhece, nomeia e responde à angústia da criança. A clínica ferencziana favorece intervenções empáticas e ativas. Transposto para práticas de cuidado, isso significa que ambientes que priorizam vínculo estável e respostas personalizadas (licença parental, cuidadores fixos, atenção domiciliar especializada) são congruentes com a perspectiva teórica de Ferenczi, ao passo que estruturas coletivas rígidas tendem a dificultar a efetiva simbolização e integração afetiva.
Implicações práticas a partir de Ferenczi
Coerência afetiva: um cuidador estável tende a oferecer respostas mais coerentes e previsíveis, condição para que a criança aprenda a nomear estados internos.
Simbolização facilitada: a devolução empática contínua promove a transformação de angústia em pensamento; sem ela, emoções podem permanecer corporalizadas.
Prevenção de fragilidades relacionais: priorizar arranjos de cuidado que assegurem continuidade (licença ampliada, pequenos grupos com cuidador fixo) reduz o risco de padrões defensivos duradouros.
Melanie Klein: mundo interno, objetos e internalização
Klein coloca a construção do mundo interno como resultado direto das primeiras relações objeto. Desde muito cedo a criança vive situações de transferência, projeção e introjeção que vão formar imagens internas de “objeto bom” e “objeto mau”. Essas imagens internas são a matéria-prima dos processos defensivos e da capacidade de tolerar frustração.
Quando o cuidado é singular e sintonizado com os estados emocionais do bebê, as experiências de frustração podem ser metabolizadas, transformando-se em representações internas suportáveis. Em contrapartida, a multiplicidade de cuidadores e a falta de um olhar individualizado podem fragilizar a construção dessas representações seguras, dificultando a evolução das posições paranoide-esquizoide e depressiva descritas por Klein.
Winnicott: holding, ambiente facilitador e o “self” verdadeiro
Winnicott oferece conceitos diretamente aplicáveis à questão do cuidado diário:
Holding (sustentação emocional e física): o bebê necessita não só de alimentação, mas de um corpo e uma mente que o contenham: um adulto que perceba, regule e devolva sentidos às suas angústias.
Cuidador suficientemente bom: continuidade responsiva permite o aparecimento do self verdadeiro e a transição segura para a autonomia.
Espaço potencial e objetos transicionais: a exploração e a brincadeira se desenvolvem com segurança quando o adulto oferece um ambiente facilitador.
A organização típica de creches (muitas trocas, horários rígidos, número elevado de crianças por cuidador) tende a tornar difícil a oferta contínua desse tipo de sustentação individualizada.
Mecanismos psíquicos que sustentam a primazia do vínculo adulto-criança
Co-regulação afetiva: bebês dependem da presença adulta para regulação de estados corporais e emocionais; por repetidas experiências de co-regulação, crescem estruturas neurais que suportam a autorregulação.
Espelhamento e contenção: a nomeação e devolução do estado afetivo pelo adulto favorecem integração emocional.
Internalização de um objeto segurador: a figura cuidadora internalizada permite tolerar ausência e frustração.
Desenvolvimento da simbolização: a capacidade de pensar emoções surge quando o adulto traduz e simboliza os estados do bebê.
Esses processos ocorrem com intensidade máxima nos primeiros dois anos de vida, período em que a interação com pares ainda é limitada em termos simbólicos.
Por que a interação com outras crianças não substitui o cuidado adulto precocemente
Limitações das interações entre bebês: antes dos 18–24 meses, as trocas entre crianças são majoritariamente paralelas e imitações, não oferecem a modelagem afetiva e a contenção que um adulto pode prover.
Aprendizagem social mediada pelo adulto: habilidades como nomear sentimentos, tolerar frustração e reconhecer limites dependem do modelo e da intervenção adulta e não com outras crianças.
Risco de estímulo excessivo sem contensão: coletivos podem gerar sobrecarga sensorial e emocional sem a devolução interpretativa necessária à integração afetiva.
Conclusão
Freud, Ferenczi, Klein e Winnicott convergem na ideia de que a qualidade do vínculo com o adulto primário é constitutiva da psique infantil. Os mecanismos de co-regulação, internalização e simbolização explicam por que, nos primeiros anos, o cuidado adulto individualizado favorece um desenvolvimento emocional que a simples exposição precoce à rotina coletiva da creche não substitui. Priorizar vínculo e atenção sensível nos primeiros anos é investir na saúde relacional e na capacidade de autonomia futura.
À luz da teoria psicanalítica e das pesquisas sobre apego, recomenda-se, sempre que possível, que a entrada escolar formal do sujeito ocorra entre 4 e 6 anos. Nessa faixa etária a criança já consolidou bases de vínculo, linguagem e simbolização que permitem uma transição menos traumática para rotinas coletivas; a socialização com pares passa então a atuar de modo produtivo sobre o desenvolvimento socioemocional. Essa indicação integra as contribuições de Winnicott (holding e cuidador suficientemente bom), Ferenczi (necessidade de simbolização relacional), Klein (internalização de objetos) e as evidências sobre apego de Bowlby e Ainsworth, sem desconsiderar as condições socioeconômicas e a qualidade das instituições de cuidado.
Referências:
Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905).
Ferenczi, S. "Confusão de línguas entre adultos e a criança" (1933).
Klein, M. A psicanálise da criança (1932); Inveja e gratidão (1957).
Winnicott, D. W. Processos de maturação e o ambiente facilitador (1965).
Bowlby, J. Apego e perda (1969–1980); Ainsworth, M. D. S. Padrões de apego (1978) - para conexão com evidências empíricas.
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